O Post de hoje, do Blog Espaço Shopping Benfica, é voltado para uma das relações mais sinceras e vitais para a existência humana: a amizade.
Para lembrá-la, fica a sugestão desse texto, escrito pela talentosa e saudosa escritora Rachel de Queiroz.
Antes da leitura dele, ressaltamos que Rachel fez história na literatura nacional e internacional. Foi a primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras e também a receber o Prêmio Camões (equivalente ao Nobel da literatura portuguesa). A tradutora, romancista, escritora, jornalista, cronista prolífica e dramaturga (!) entrou para a nossa Academia no ano do centenário da instituição, em 1994.
Ela faleceu em 2003, aos 92 anos. Sua obra a mantem eterna nas páginas de jornais, livros e, agora também, nesse post que exalta os amigos.
"Sim,
amigo é coisa muito séria. Acho que a gente pode viver sem emprego, sem
dinheiro, sem saúde e até sem amor, mas sem amigos, nunca. Pois o amigo
é capaz inclusive de suprir discretamente essas faltas e lhe conseguir
trabalho, lhe emprestar dinheiro, lhe tratar a doença. Só não pode se
envolver em assuntos de amor, porque aí deixa de ser amigo; e maior
tolice a que se arrisca a incorrer alguém é misturar amigo com amor.
Amizade e amor são qualidades paralelas na vida de cada um; se conhecem,
até se estimam, mas nunca se encontram ou se confundem. Aliás, não
estou dizendo novidade nenhuma, todo mundo sabe que o namoro, noivado,
casamento, amores são relações essencialmente antípodas da amizade. Quer
pela sua impermanência, ou, quando permanentes, pela sua natureza
tumultuária, absorvente, egoísta, as relações de amor têm que ter
categoria à parte. Transforme em amante o seu amigo ou amiga, e vocep
ede o amigo e terá um péssimo amante, que sabe todos os seus defeitos,
lhe conhece do tempo em que você não se enfeitava para ele, não lhe
escondia suas falhas do corpo e da alma, e que, portanto sabe de todos
os seus pontos fracos. Fica impossível.
A primeira lei da boa amizade creio que é ter poucos amigos. Muitos
camaradas, colegas, conhecidos cordiais, mas amigos, poucos. E, tendo
poucos, poder e saber tratá-los. Jamais criar tempo de rivalidade entre
os amigos: cada um h´de ter sua área específica, sua zona própria de
influência.
Não vê que cada amigo, por ser único no seu território, não precisa
sequer conhecer os donos dos outros territórios. É que, sendo a nossa
alma tão variada nas exigências, precisamos de amigos de acordo com os
diferentes ângulos do nosso coração. O amigo da comunicação intelectual
não pode ser o mesmo amigo da confiança íntima; o velho companheiro da
infância não tem nada a ver com o precioso camarada adquirido nos anos
de maturidade.
E há outras razões práticas para não misturar os amigos: eles podem se
coligar contra a gente, ou se tornar amigos entre si, por conta
própria, nos excluindo. Ou também podem se chatear uns com os outros,
porque os companheiros espirituais deles nem sempre correspondem aos
nossos. Se você adora fulano porque toca em suas cordas nostálgicas,
contando-lhe lembranças da mocidade passadas na barranca de um rio em
Mato Grosso. Assim com o futebol, os debates sobre religião, as intrigas
políticas, os negócios, o gosto de recordar os sambas de Noel Rosa.
Insisto, mantenha com rigor cada amigo no seu compartimento.
Axioma absoluto em assuntos de amizade: amigo é insubstituível. O que um
lhe deu jamais outro lhe poderá dar igual. Pode vir um amigo novo para
preencher a área vazia deixada pelo amigo que se foir por morte ou
briga. Mas só ocupará mesmo aquele espaço físico. E há vezes em que nem
isso é possível. E o melhor será fechar aquele nicho do coração, dada a
dificuldade de encontrar outro ser vivo que satisfaça ante nós as
especificações do ausente. Ai de mim, bem o sei. Minha amiga de infância
que morreu deixou no meu peito esse santuário vazio.
Respeite seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles,
governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a
gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos. E
nisso está outra superioridade da amizade sobre o amor: a amizade
conhece as nossas falhas e as tolera e, até mesmo, as encara com
condescendência e afeto. Já o amor é só de extremos e, ou se
entrincheira na intolerância, ou se anula na cegueira total. Amigo
entende, aguenta, perdoa, "Amigo é pra essas coisas", como diz aquela
cantiga tão bonita.
Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza, você é
como o unicórnio, o animal de que se fala mas não existe. Porque até os
bichos têm amigos; e dizem que, depois da morte, no outro mundo, as
almas mantêm sublimadas as amizades cá de baixo, naquela quintessência
de excelências que só o céu pode dar. "
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